quinta-feira, 19 de agosto de 2010

FALA TELMA DE SANTOS! ENTREVISTA DE 1991 - PARTE 01

Com essa entrevista, o VOTE CULTURA PT, abre a seção FALA TELMA DE SANTOS!, que tem como tema o resgate do período Telma de Souza na Prefeitura.
A entrevista foi concedida ao jornalista Ricardo Azevedo, da Revista Teoria e Debate, e publicada na edição de nº 16, em outubro de 1991.
Nela, vemos Telma em pleno exercício de seu penúltimo ano de mandato, um ano antes da eleição de David Capistrano, que coroaria de vez os 97% de aprovação de sua administração.
Dinamismo, ousadia e perfeita lucidez no encaminhamento das soluções para os problemas mais centrais que se apresentavam para o município, na última década do século passado. Telma encaminhou soluções inovadoras e antecipou a agenda política do século XXI: secretaria de meio ambiente, saúde para todos, saúde mental sem manicômios, transporte coletivo de qualidade, educação universal e inclusiva, programa de acessibilidade para os portadores de deficiência, órgão de defesa do consumidor, creches municipais, coleta seletiva, recuperação da balneabilidade das praias e muito mais.
Com Telma, Santos dava o tom e o Brasil aprendia com a gente.
Neste trecho da entrevista, que apresentaremos em capítulos, Telma fala do Porto, da Saúde, da Aids e da Saúde Mental. Com a palavra, Telma de Souza, que nessa época ficou nacionalmente conhecida como a "Telma de Santos". FALA TELMA!

por Ricardo Azevedo
Santos é uma cidade sem paralelo no Brasil. Fundada em 1543, carrega fortes marcas de conservadorismo e provincianismo típicos das famílias quatrocentonas. Contraditoriamente, foi conhecida nas décadas de 50 e 60 como "a cidade vermelha" pela forte presença do PCB no sindicalismo - particularmente no porto - e na política local, onde chegou a eleger em 1947, já na legalidade, 14 vereadores numa Câmara de 31. Até hoje, as marcas dessa tradição se fazem sentir no movimento sindical santista. A força do sindicalismo combativo no início dos anos 80 era quase nula e só agora começa a mudar, em grande parte devido à atuação da Prefeitura. Mas até hoje a Força Sindical tem grande peso.
Em 1988, o PT ganhou as eleições para prefeito com 27% dos votos, menos de mil à frente do candidato do PMDB, Del Bosco Amaral, num eleitorado de cerca de 250 mil pessoas. A vitória deve ser creditada muito mais ao carisma da candidata do que à força do partido, que só conseguiu eleger três entre 21 vereadores. Telma tem uma grande identificação com Santos: nasceu e sempre viveu lá; tanto seu pai como sua mãe foram vereadores, ele pelo PTB, ela pelo MDB; naturalmente Telma é torcedora e sócia do Santos Futebol Clube.
Telma, que não tinha nenhuma militância anterior, é talvez o exemplo mais destacado da geração que entrou na política através do PT. Profundamente identificada com a cidade, seu comportamento pessoal entretanto, mexe com os setores mais conservadores: mulher desquitada, casada de novo, toma atitudes corajosas como, por exemplo, ir pessoalmente à zona do meretrício conversar com as prostitutas sobre Aids. Seu estilo incomoda e simultaneamente causa admiração nas pessoas. É uma típica líder carismática.
Logo nos primeiros meses de governo, a administração democrática e popular de Santos enfrentou duas grandes brigas: com a Viação Santos-São Vicente, que manipulava o transporte em toda a região, e com o dono da Casa de Saúde Anchieta. A Prefeitura decretou estado de calamidade pública e interveio em ambos os casos.

Depois de três anos à frente da administração de Santos, qual é o balanço que você faz?
Santos, por suas condições geográficas e climáticas, tem um perfil um pouco diferenciado das outras administrações petistas. Nós temos uma determinação básica que é o elemento água, por estarmos em uma ilha que sedia as cidades de Santos e São Vicente. Temos 12 quilômetros de porto e oito de praia. Sabendo disso, entendemos que o porto - que é o maior da América Latina - é a questão central, tanto política como economicamente.

PORTO DE SANTOS


Qual tem sido a atuação da Prefeitura em relação aos trabalhadores do porto?
Nós conseguimos parar a cidade em 28 de fevereiro de 91, a partir de uma ação que começou por uma reivindicação trabalhista dos operários portuários e que acabou em uma ação político-econômica do conjunto da cidade que, mobilizada pela questão do emprego, compreendeu a ameaça que seria para ela a demissão de 5.372 portuários. O comércio entendeu que sem o poder aquisitivo dos trabalhadores, não haveria poder de compra: o porto dá guarida a 43 mil empregos diretos e indiretos, ou seja, são cerca de 160 mil pessoas que dependem dele para sobreviver, o que representa a terça parte da população de Santos. A cidade parou porque percebeu que sua sobrevivência estaria em risco se não houvesse uma reação drástica em relação ao governo federal.

Manifestação em defesa dos trabalhadores do Porto
Quantas pessoas participaram dessa manifestação?
Vinte mil pessoas. Foi o maior ato a que esta cidade assistiu. Houve também uma greve geral que provocou a paralisação total de Santos. Houve a habilidade da administração democrático-popular para envolver o Fórum da cidade, composto por personalidades locais, nem todas do campo progressista ou da esquerda, mas que opinam sobre sua cidade. Essa luta conseguiu, num curto espaço de tempo, propagar-se e defender a cidade e a região de uma política econômica que representava o primeiro grande passo da privatização, com demissões em massa.

Isso atingiu, além dos sindicatos e do comércio, os setores empresariais?
Sem dúvida, fizemos atos juntos. Há empresários mais modernos que entendem que não é fazendo a exploração econômica dos trabalhadores que se evolui. A partir desta compreensão houve um acordo e uma cumplicidade de todos os setores da cidade.

Recentemente a Folha de São Paulo publicou que o Porto de Santos é um dos mais deficitários do Mundo. Qual a proposta da Prefeitura de Santos para essas questão?
Estive na Europa em outubro de 88. Voltei com muitas informações para poder discutir com o conjunto da população. Até 1980 o porto de Santos era propriedade da família Guinle. Em seguida foi estatizado, passando a pertencer ao governo federal. O porto foi sucateado ao longo dos dois gerenciamentos. Recebi críticas dos sindicalistas, dos empresários e do Poder Público ao dizer que o porto precisava ser modernizado e que sua concepção estava parada no tempo. Como compactuar com um porto obsoleto, que precisa de reformulação mas que não pode ser modernizado às custas exclusivamente do trabalhador? Aí estava o grande desafio.
Nós buscamos experiências de outros portos, discutimos com sindicatos, empresários e conseguimos evoluir em menos de quatro meses para a proposta que agora tem o nome de tripartite.

Como é essa proposta?
Santos é presidente da Associação Nacional de Municípios Portuários. Em 1990 realizamos o 3º Congresso de Municípios Portuários, onde começamos a discutir a proposta de envolver as forças que atuam no porto: trabalhadores, empresários - que são os usuários - e o próprio poder público nas três dimensões: município, estado e União. Hoje, depois de dois congressos nacionais e de termos um encontro de órgãos técnicos relacionados com o porto, conseguimos acumular informações que ajudaram a incrementar essa discussão. Nesses dois anos devo ter ido a todos os portos brasileiros discutir a tripartite. Estive em Brasília, com pelo menos mil representantes de portuários, a convite da Comissão de Transportes da Câmara Federal, que tem à frente o deputado federal Carlos Santana, do PT/RJ. Essa comissão organizou uma série de discussões e foi buscar subsídios no exterior para saber como deve ser um modelo de gestão que congregue as forças que atuam nos portos e avance para a modernidade. Através dessa ação, deflagrada pela Prefeitura de Santos, conseguimos chegar à proposta do Conselho de Autoridade Portuária, que coordenaria a condução das políticas para o porto: um conselho de nove pessoas, três representantes dos trabalhadores, três dos empresários e três do Poder Público ( um da União, um do estado e um do município). Nesta mesa de negociação é que se darão todos os embates. Através do gabinete do deputado federal José Dirceu, a Prefeitura de Santos apresentou duas emendas ao projeto que desregulamenta os portos brasileiros, mas do ponto de vista do capital estrangeiro, sacrificando trabalhadores e o empresário nacional. As nossas emendas são: proposta tripartite de formação do Conselho de Autoridade Portuária e criação de cursos regulares de aperfeiçoamento da mão-de-obra dos trabalhadores portuários. Neste momento, o governo federal está incentivando através da oferta de quatro ou cinco salários-mínimos, a retirada daqueles que não querem mais trabalhar nos portos. A nossa proposta é que essa retirada não seja feita num período inferior a cinco anos, porque isso vai causar desemprego em massa. Nós vamos trabalhar em três níveis: criar o Conselho de Autoridade Portuária Tripartite, organizar cursos regulares de aperfeiçoamento da mão-de-obra e obter um período não inferior a cinco anos para diminuição da mão-de-obra. Em Barcelona se fez uma reciclagem em dez anos. Eles incentivaram a saída dos mais antigos, criaram cursos ligados à informática e ao manuseio de guindastes e infra-estrutura moderna do porto para os mais jovens e mantiveram na malha direta os de idade intermediária. Em dez anos, houve uma redução de 15 mil pessoas que trabalhavam no porto para cerca de 2 mil, sem convulsão. Isto é importante porque à medida em que se operacionaliza, informatiza, racionaliza, torna-se necessário diminuir o número de trabalhadores. Mas é preciso dar alternativas a eles.

Ou seja, a proposta da Prefeitura de Santos não se choca com a necessidade da modernização dos portos brasileiros.
Pelo contrário, nós entendemos que tem que haver competitividade e o nosso porto tem condições de ser um dos primeiros do mundo. Porém, essa modernização só acontecerá com investimentos no setor de maquinário e na preparação do trabalhador para usá-lo. A modernização não pode ser incompatível com a questão do respeito ao trabalhador e aos empresários médios. Eles já perceberam que estão juntos nessa luta. A equação não é tão difícil.

SAÚDE

Um dos pontos fortes da administração petista de Santo é a área da saúde. Eu queria que você falasse um pouco disso.
Na saúde, nós conseguimos um modelo de atendimento muito bom. O fato de contarmos com uma figura como o Davi Capistrano à frente da Secretaria da Saúde, nos deu não só uma experiência anterior que ele teve na Prefeitura de Bauru, mas também um quadro político de grande capacidade. A nossa meta é uma policlínica para cada 20 mil habitantes. E, já no primeiro ano, conseguimos fazer vinte.

O que é uma policlínica?
Uma policlínica fornece o atendimento básico à população em quatro áreas: clínica geral, ginecologia-obstetrícia, cardiologia e pediatria. Hoje nossas policlínicas estão informatizadas.

Parece que é a única cidade da América Latina que tem isso...
É a única cidade da América Latina que tem um computador central no pronto socorro e computadores nas policlínicas. Se você chegar em uma delas, ela já tem uma análise de sua vida. Se der entrada no pronto-socorro, sua ficha já estará lá. Isso economiza minutos preciosos. Hoje, nos aperfeiçoamos ao ponto de chamar o paciente em casa, caso ele falte às consultas. Damos atendimento dentário e temos um programa exclusivo para crianças. Onde nós esbarramos? Na retaguarda hospitalar: Santos não tem hospital municipal. O hospital que poderia nos dar cobertura é o Hospital dos Estivadores. Ele ficou fechado muito tempo e, porque é conduzido pela Força Sindical e pelos setores conservadores, foi usado na luta política contra nós. Estamos tentando uma saída para essa questão: vamos inaugurar no nosso pronto-socorro uma pequena unidade hospitalar, com alguns leitos, e fizemos um hospital com trinta leitos, em Bertioga, também no primeiro ano. Até o final do ano estaremos elaborando o programado hospital domiciliar, onde quem se desloca é o médico para a casa do paciente. Nosso setor de saúde dá o tom da Prefeitura de Santos.

SAÚDE MENTAL

José Gonçalo, "o Jacaré" (ex-interno) adotou a música como terapia
E no caso da saúde mental, o que foi feito?Como professora de Psicologia, tenho especial carinho pela ação em saúde mental e essa é outra marca da cidade. Santos sempre conviveu com uma nódoa, uma cumplicidade silenciosa, em relação à Casa de Saúde Anchieta. Todos sabiam que ela existia, que era um lugar onde cabiam duzentas pessoas e existia uma superlotação, com 650 internos; sabiam que o choque elétrico era usado, que havia um só psiquiatra por dia para o conjunto dos pacientes; que as pessoas escolhiam o remédio para tomar por cor etc. Enfim, uma verdadeira casa de horrores. Diante deste quadro resolvemos agir e um dia tomamos de assalto a casa de horrores. Se a emoção da greve geral do dia 28 de fevereiro de 91 foi grande, a emoção de ter entrado lá foi algo extraordinário, porque tudo aquilo que nós sabíamos dos hospitais, das casas de loucuras, nós encontramos. A Casa de Saúde recebia uma verba mensal de 300 milhões do Inamps e gastava doze. O choque elétrico, por exemplo, era usado em larga escala, porque custa caro e é possível cobrar muito do Inamps.

Como se chama o dono de casa?
Edmundo Maia. Ele é uma pessoa sinistra. Absolutamente insensível. É negociante da loucura. E quando nós decidimos fazer essa intervenção,entramos com toda coragem. Foi o ato mais difícil do meu governo.

Como está a situação hoje?
No dia 16 de outubro, tivemos o julgamento de uma liminar que foi impetrada pelos antigos donos e o juiz deu ganho de causa à Prefeitura. A Casa de Saúde Anchieta se tomou uma unanimidade local, regional, nacional e internacional. Antes os internos trabalhavam por um prato de comida melhor, a chamada "bandeja laborterápica", e um cigarro. Não existe mais a laborterapia. As pessoas trabalham com arte, pintura, música, teatro, tem a rádio Tam-Tam, a TV Tam-Tam, um jornalzinho, bijuterias, existe uma grife Tam-Tam.

Quantos internos estão lá?
Temos duzentos e poucos pacientes, mas as pessoas não ficam internadas, nós mantemos todo um trabalho com as famílias.

Na época da intervenção você disse que havia um psiquiatra por dia. E hoje, quantos trabalham lá?
Atualmente temos 35 psiquiatras e oito psicólogos concursados, doze enfermeiras, seis terapeutas ocupacionais, dez assistentes e dois arte-terapeutas. A Casa de Saúde Anchieta deflagrou uma luta nacional. Hoje, com a ação do PT, vemos em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, a entrada de comissões de saúde nos chamados hospícios. Essa ação é reforçada pelo projeto-lei do deputado federal Paulo Delgado "Por uma sociedade sem manicômios". Aqui em Santos, nós descentralizamos a Casa de Saúde Anchieta. Temos pequenas filiais nas zonas mais carentes, onde a loucura e o alcoolismo, basicamente, são mais evidentes. Temos os Naps - Núcleos de Ação Psicossocial. Um dos Naps, que fica na zona noroeste, fundou a Associação dos Familiares dos Pacientes da Casa de Saúde Anchieta. E os familiares estão se articulando, porque entendem que não basta a ação da Prefeitura, é preciso uma ação social mais organizada. Santos é referência internacional para a questão e nos baseamos, evidentemente, na ação de Franco Basaglia em Trieste e de Franco Rotelli.

COMBATE A AIDS


Ainda na área de saúde, Santos é a primeira cidade do Brasil, em número de aidéticos. Como é que a Prefeitura vêm enfrentando este problema?
Eu penso que não é verdade que nós somos a primeira mas a versão é de que somos. Nós admitimos que há Aids, não importa em que patamar, e admitimos que esta cidade tem que lutar sem nenhum pudor e sem nenhuma covardia. A questão da Aids está ligada às drogas, à sexualidade, à loucura, quer dizer, é o apocalipse moderno. Nós temos um programa muito ambicioso. Estamos recebendo a visita de um médico norte-americano, Dr. Andrew Mass, que disse que nós temos um programa com perfil de Primeiro Mundo. Várias de nossas ações foram muito criticadas no início, principalmente pelo fato de eu ser mulher: "a prefeita de Santos distribui camisinhas". Nós criamos uma policlínica dentro do centro velho, onde existe o meretrício, que foi a primeira a distribuir camisinhas. Nós temos a Casa de Apoio e Solidariedade aos Pacientes de Aids. Lá estão aqueles aidéticos que são os portadores do vírus ou aqueles que já têm a doença desencadeada, que não são mais aceitos pela família. Mas além disso nós resolvemos agir no combate ao preconceito, juntando as famílias dos pacientes de Aids. Hoje temos um programa para o imuno-deprimido, a distribuição dos preservativos, campanhas educativas, o Disque-Aids, onde os psicólogos respondem às perguntas da população.

Para encerrar, qual a "menina dos olhos" de todas essas realizações?
A nossa ação na questão da saúde mental. É incrível você ver o resgate da cidadania e as pessoas novamente erguendo a sua coluna vertebral e se sentindo cidadãos, como está acontecendo, aliás, com esta cidade.